Narciso, um jovem de extrema beleza, era filho do
deus-rio Cephisus e da ninfa Liriope. No entanto, apesar de atrair e despertar
cobiça nas ninfas e donzelas, Narciso preferia viver só, pois não havia
encontrado ninguém que julgasse merecer seu amor. E foi o seu desprezo
pelos outros que o derrotou.
Quando Narciso nasceu, sua mãe consultou o adivinho Tirésias que lhe
predisse que Narciso viveria muitos anos desde que nunca conhecesse a si mesmo.
Narciso cresceu tornando-se cada vez mais belo e todas as moças e ninfas
queriam seu amor, mas ele desprezava a todas. Certo dia, enquanto Narciso
descansava sob as sombras do bosque, a ninfa Eco se apaixonou por ele. Porém
tendo-a rejeitado, as ninfas jogaram-lhe uma maldição: - Que Narciso ame
com a mesma intensidade, sem poder possuir a pessoa amada. Nêmesis, a
divindade punidora, escutou e atendeu ao pedido.
Naquela região havia uma fonte límpida de águas cristalinas da qual ninguém
havia se aproximado. Ao se inclinar para beber água da fonte, Narciso viu
sua própria imagem refletida e encantou-se com sua visão. Fascinado, Narciso
ficou a contemplar o lindo rosto, com aqueles belos olhos e a beleza dos
lábios, apaixonou-se pela imagem sem saber que era a sua própria imagem
refletida no espelho das águas.
Por várias vezes Narciso tentou alcançar aquela imagem dentro da água mas
inutilmente; não conseguia reter com um abraço aquele ser encantador.
Esgotado, Narciso deitou na relva e aos poucos seu corpo foi desaparecendo. No
seu lugar, surgiu uma flor amarela com pétalas brancas no centro que
passou a se chamar, Narciso.
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Na cultura grega e em muitas outras, tudo o que excedia e estivesse acima dos
limites e da medida (métron) acabava se transformando em algo assustador
porque poderia levar à hybris, que é descomendimento e desequilibrio. O excesso
de beleza não era bem aceito pois somente aos deuses era permitido o
exagero, e a excessiva beleza de Narciso desafiava a supremacia dos
deuses.
O mito de narciso parece uma triste história infantil para ensinar às crianças
a nãoserem egoistas, que pensem nos outros, que não sejam presunçosas, porém
encerra uma verdade profunda e atual. Os mitos não são tolos, e por mais
que tentássemos dizer que sabemos a moral da história, o mito de Narciso está
presente em todos nós.
Narciso foi transformado numa flor e a ela são creditadas propriedades
entorpecentes devido a substâncias químicas que exalam. Os Narcisos
plantados nos tumulos simbolizavam a morte apenas como um sono, que floresceria
na primavera. O narcisismo, que tem o seu nome derivado de Narciso, ambos
derivam da palavra grega narke, entorpecido, de onde também vem a palavra
narcótico. Assim, para os gregos, Narciso simbolizava a vaidade e a
insensibilidade, pois Narciso era emocionalmente entorpecido às
solicitações daqueles que se apaixonaram pela sua beleza.
O mito de Narciso leva ao tema da transitoriedade da beleza e dos laços que
unem o narcisismo à inveja e à morte. O dilema do narcisismo é resumido
naquele que está condenado a permanecer prisioneiro do mundo das sombras, do
seu amor por si mesmo ou libertar-se através do autoconhecimento e da
capacidade de conhecer os outros, mas o preço é a morte simbólica do ego,
para que possa nascer novamente para um novo Eu superior, profundo e sagrado,
que em si oculta.
Narciso morre porque olha só para si mesmo, esse é o perigo de quem dedica toda
vida a satisfazer necessidades que não atendem ao verdadeiro anseio humano
de se realizar. Eco morre porque só olha narciso, esse é o perigo de projetar
no outro a nossa razão de viver. Narciso simboliza a capacidade de
olharmos para nós mesmos; Eco simboliza acapacidade de olhar o outro. É o olhar
em si que encontra o outro; é o olhar no outro que encontra a si mesmo.
Embora o narcisista pense apenas em si, nunca poderá conhecer a si mesmo
se não tiver uma posição exterior para se ver como realmente é. Narciso é
incapaz de ver o efeito que provoca nos outros; sabe que atrai aduladores e
admiradores e Eco transforma-se no espelho do negligente Narciso. Ele se
julga intocável; ela alimenta o desejo de estar em seus braços.
Eco é a repetição das ideias conhecidas sempre hostil ao novo. Ao se apaixonar
por Narciso, Eco repetiu... repetiu... e foi perdendo força, impedida de
viver e amar. Eco se refugiou nas grutas, assim como a mente que teima em repetir perdendo
quotas do que é novo em suas vidas. O presente é a única instância onde a vida
se processa; o futuro ainda não existe e o passado é repetição, um eco. O
presente é a medida do novo e trazer Eco para o presente é fazê-lo mais velho, embora
ainda pareça novo.
Com seu egoismo implacável, Narciso pensa só em sí próprio e Eco só pensa em
Narciso, então sua autoestima permanece frágil até a morte. Ele não se
identifica com os outros e assim transforma as vozes na sua propria voz; ela não
tem voz própria, está condenada à repetição da imitação. Enquanto ela agarra-se
ao objeto amado, ele mantem-se àdistancia. Tirésias sabia que para
sobrevivermos temos de superar o narcisismo, pois temos de aceitar que somos transitórios
e mortais, e só assim seremos capazes de nos transformar, nossa auto estima
estará segura e teremos a beleza interior.
Quando Narciso vê o próprio reflexo, nos remete a "reflectere", de
"re" novamente e "flectere" curvar-se, ou seja, um retorno
que se faz curvando para o passado. Reflexão não é apenas um ato de pensar, mas
é uma atitude de deter-se para procurar lembrar-se de algo que já foi
visto antes e confrontar com o presente. Reflexos e sombras nos espelham de alguma
maneira. Alguns povos ainda hoje não admitem que sua imagem seja refletida em
água, espelho e fotografia; diz-se que a alma poderia ficar retida no
reflexo permanecendo disponível às forças do mal.
A sombra representa o que não conhecemos de nós mesmos mas que podemos ainda
conhecer, tal como as nossas potencialidades que ainda não desenvolvemos.
Também faz parte da nossa sombra o que mais detestamos em nós mesmos, e
por isso tentamos esquecer ou reprimir de alguma forma. Para negar o que não
gostamos em nós mesmos,projetamos nos outros. Quando refletimos no Narciso que
vive em nós, nos confrontamos com algo sombrio, o medo da sombra, do
diferente, do desconhecido, do que nos incomoda e que não queremos ver no
outro.
Nos sentimos mais confortáveis quando somos admirados e reconhecidos, e
precisamos disso para saber o nosso valor, de que somos importantes para
alguém. Assim continuamos procurando e nos apaixonando por nossos reflexos, por nossos
semelhantes e iguais, enquanto tentamos afastar todos aqueles que que não tem a
nossa cor, os nossos costumes, nossa raça, nosso nivel cultural ou poder
economico, e convicções politicas e religiosas. E enquanto vamos em busca
dos nossos reflexos, ampliamos mais nossa sombra, entorpecemos nossos sentidos.
Para evoluir temos de refletir, aprendendo a lidar com as diferenças e conflitos.
Como num espelho, ao interargimos com o outro nos colocamos no lugar dele,
sem perder nossa referencia. E o que mais nos fascina é a nossa imagem irreal, aquela
que fazemos de nós mesmos. A pessoa fascinada parece estar em transe; o
narcisista quer congelar a juventude e exorcizar a velhice. Idolatra o
prazer e vive no espirito do encanto e da sedução.
O mito de Narciso pode servir de metáfora para muitos de nós, quando não
conseguimos nos olhar com imparcialidade, e o nosso trabalho interior se torna
um meio de projetar a vaidade humana na cantiga do eu sozinho: eu faço, eu sou,
eu quero, eu posso. Narciso morreu embriagado pela propria beleza e
encantamento, e os deuses o transformaram numa flor. A lição do mito é que
o conhecimento só vinga se houver autoconhecimento, de potencialidades ou
limitações, compartilhando o que sabe, eliminando vaidades que impede de
aproveitar talentos e somá-los ao conhecimento dos demais. E assim escrever
uma história de vida que reflita valores éticos, morais espirituais.
O conhecimento mal direcionado só alimenta o individualismo e a
necessidade da ribalta. Quando nos deixamos levar pela excessiva vaidade e
orgulho, tornamo-nos refens de nossa auto imagem. Magnetizado por ela,
passamos a usar nossa luz de forma mesquinha e presos nessa miragem, perdemos a
capacidade de irradiar nossa luz, afastando-nos da essencia, entusiasmamos
pelo palco, pelo aplauso e pelo falso elogio. Somente a dura lição de
cronos, o tempo, mostra-nos a verdade, muitas vezes, tardiamente.
Se Narciso se encontra com outro Narciso e um deles finge que ao outro admira,
para sentir-se admirado, o outro pela mesma razão finge também e ambos
acreditam na mentira. Para Narciso o olhar do outro, a voz do outro, o corpo é
sempre o espelho em que ele a própria imagem mira. E se o outro é como ele
outro Narciso, é espelho contra espelho: o olhar que mira reflete o que o
admira num jogo multiplicado em que a mentira de Narciso a Narciso inventa o
paraíso.
E se amam mentindo no fingimento que é necessidade e assim mais verdadeiro que
a verdade. Mas exige o amor fingido, ser sincero o amor que como ele é
fingimento. E fingem mais os dois com o mesmo esmero com mais e mais cuidado -
e a mentira se torna desespero. Assim amam-se agora se odiando. O espelho
embaçado, já que Narciso em Narciso não se mira: se torturam, se ferem,
não se largam, que o inferno de Narciso, é ver que o admiravam de mentira...
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